domingo, 31 de julho de 2016

"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes





A exposição "Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes reúne um significativo número  de obras de Júlio Pomar (n.1926), nunca antes mostradas em conjunto, essencialmente resultantes de intervenções em arquitectura e da sua colaboração com a indústria. Realizadas a partir dos finais da década de 1940, estas obras abrangem uma enorme diversidade de técnicas, da cerâmica ao vidro, passando pela tapeçaria, a pintura, a gravura, a escultura ou o alumínio batido. Dando a conhecer aspectos menos divulgados da obra de Júlio Pomar, as intervenções em arquitectura, são mostradas através de desenhos preparatórios e documentação fotográfica e técnica, revelando alguns trabalhos entretanto desaparecidos.

Propondo uma leitura sistematizada do trabalho de um artista, na sua articulação com os usos quotidianos e as técnicas artesanais e industriais, esta mostra representa um importante passo para a legitimação das artes aplicadas do século XX, em Portugal, como matéria de investigação, contribuindo para o seu reconhecimento por um largo espectro de público.  A visitar no Atelier-Museu Júlio Pomar, até 4 de Setembro de 2016, 



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



O título da exposição recupera o título de um artigo de Júlio Pomar, Decorativo, apenas?, publicado na revista Arquitectura, nº 30, Abril de 1949, parte de um conjunto de textos de reflexão crítica, escritos pelo pintor para várias publicações da especialidade. Alguma desta produção escrita, essencial à compreensão do pensamento do artista sobre o desígnio das artes decorativas após a II Guerra Mundial, integra o acervo documental exposto, podendo parcialmente ser consultada no local.



Revista Arquitectura, nº 30, Lisboa, Abril de 1949, detalhe. © CMP



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


A propósito, Cerâmica Modernista em Portugal [CMP*] entrevistou a historiadora da arte e curadora responsável pela exposição, Catarina Rosendo [CR]. Sublinhando assim, a importância da curadoria em projectos deste tipo, onde a informação documental e a investigação, são essenciais à contextualização da obras, bem como à sua selecção e montagem, sendo a função do curador imprescindível para uma visão esclarecedora sobre o assunto tratado, como é o caso.



CMP*: Como surgiu a ideia e a proposta para fazer a exposição?

CR: Surgiu de um interesse mútuo, meu e do Atelier-Museu, pela produção de Júlio Pomar no campo das artes decorativas. Em 2013, altura em que fui convidada a comissariar uma exposição no Atelier-Museu, estava especialmente interessada nas artes decorativas do período neo-realista. Por causa da investigação para a minha tese de doutoramento, andava a trabalhar questões relacionadas com a mudança de paradigma artístico conduzido pelos artistas neo-realistas e/ou partidários da figuração, no período balizado entre o imediato pós-guerra e meados da década de 1950. Apercebi-me da importância que as artes decorativas aí tiveram, não só na sua prática como na sua teorização, por parte de artistas e arquitectos entre os quais se contou Júlio Pomar, e que foram associadas a questões como a integração das artes, o questionamento da herança deixada pelos primeiros modernismos, o estatuto do artista e a reelaboração de uma ideia de arte mais consentânea com as exigências socioculturais do pós-guerra. Verifiquei o grande vazio que ainda existe, no contexto museológico e expositivo português, em torno das artes decorativas deste período, pelo que dar início ao levantamento da produção de Júlio Pomar nesta área podia ser um passo relevante para alterar a situação e, ao mesmo tempo, dar a conhecer uma vertente menos conhecida do trabalho deste artista.



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



Júlio Pomar - Painel decorativo para o Restaurante Vera Cruz, Lisboa, 1952, detalhe. © CMP



Júlio Pomar - Painel decorativo para o Restaurante Vera Cruz, Lisboa, 1952, detalhe. © CMP



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


Júlio Pomar - Base para candeeiro, Cerâmica Bombarralense Lda., 1950. © CMP


Júlio Pomar - Jarra, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP



CMP*: Quais foram os critérios curatoriais que presidiram à sua organização?

Estabeleci dois ou três grandes critérios. O primeiro foi dar mais ênfase, nos objectos expostos, aos anos 1940-50, pois são os anos em que Júlio Pomar se dedica com mais empenho às artes decorativas, no âmbito da prática mas também da reflexão, como é patente em boa parte do que escreveu na altura. Ainda assim, optei também por incluir na exposição trabalhos mais recentes, não só porque ainda não tinham sido integrados na produção decorativa do artista, como parte ainda não tinha sido mostrado no Atelier-Museu. O segundo critério foi evidenciar as colaborações e parcerias criadas no âmbito da realização das obras de carácter decorativo, seja com arquitectos, com vidreiros e ceramistas ligados à indústria, com promotores e encomendadores, e mesmo com os fotógrafos da época. A exposição, sendo centrada em Júlio Pomar, apresenta uma constelação de autores, como Victor Palla e Bento de Almeida, Keil do Amaral, Artur Andrade, Conceição Silva, Celestino Castro, Artur Pires Martins, Alberto Pessoa, Hernâni Gandra e João Abel Manta, Raul Hestnes Ferreira, Mário Novais e Alice Jorge, centros produtores como a Cerâmica Bombarrelense Limitada, o Estúdio Secla, a Fábrica Sant’Anna, a Fábrica Cerâmica Viúva Lamego, a Manufactura Tapeçarias de Portalegre, a Fábrica-Escola Irmãos Stephens, espaços de divulgação como as revistas Arquitectura, Vértice, Mundo Literário e Seara Nova, e redes de cumplicidades partilhadas com Manuel Torres, Ernesto de Sousa, Querubim Lapa, entre muitos outros. O terceiro critério, que é o mais visível nas soluções de montagem escolhidas, pretendeu anular a distinção entre “artes maiores” e “menores”, algo que está implícito na noção da integração das artes e, de um modo geral, no ímpeto decorativo da geração modernista do pós-guerra ligada ao neo-realismo. Muito mais do que eleger, para a exposição, os exemplares máximos de uma qualidade estética afim da noção de “obra-prima”, quis ensaiar uma forma de expor a realidade artística, tecnológica e social de um dado momento histórico, ou se se quiser, de explorar as imagens que nos chegam hoje de um dado tempo. Para isso, misturei intencionalmente, no mesmo plano de visão, objectos decorativos de uso quotidiano como jarras, pratos e tapeçarias, desenhos, pinturas, originais, múltiplos, fotografia de autor, fotografia documental, desenhos de arquitectura, memórias descritivas e minutas de contratos. Nestes últimos três casos, infelizmente, tive de recorrer a reproduções de alta qualidade, pois o Arquivo Municipal de Lisboa não emprestou os livros de obra, à excepção do referente à Escola de Vale Escuro, que contém o desenho original, de Pomar, do mural depois elaborado e que é estilisticamente bastante diferente do resultado final.



Júlio Pomar - Jarras (Gato e Gato Siamês), Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Travessa, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Jarra (Burro), Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Garrafas, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, c. 1957. © CMP



Júlio Pomar - Estudo para Arroz, têmpera sobre aglomerado de madeira, 1953. © CMP



CMP*: Quais foram as descobertas mais importantes que fizeste, ao longo dos dois anos de investigação que prepararam a exposição? 

CR: A investigação decorreu durante dois anos, mas não ocupou a totalidade desse tempo, muito longe disso! Durante este período, realizei sobretudo trabalho de campo, a partir das pistas fornecidas pela bibliografia disponível e por informações obtidas junto de Júlio Pomar e de Alexandre Pomar, e contei com a colaboração de Pedro Faro, que é também historiador da arte e trabalha no Ateliê-Museu. Na realidade, visitámos juntos praticamente todos os museus, instituições e casas particulares que localizámos no processo de pesquisa. As descobertas mais interessantes não se prendem tanto com as obras em si, algumas delas surpreendentes enquanto objectos estéticos, mas com o mapeamento do seu contexto de produção e das suas inerentes redes de cumplicidades. Apercebi-me que, apesar de começar a desenvolver-se um coleccionismo especializado neste tipo de peças, há muita coisa ainda na posse dos proprietários originais ou dos seus herdeiros directos o que, no campo da produção decorativa mais doméstica, pode colocar problemas quanto à sua preservação, isto porque se algumas pessoas reconhecem o valor patrimonial destes trabalhos, e agem em conformidade, outros nem sequer sabem que têm em casa peças únicas ou o nome do seu autor. Também verifiquei que algumas das obras feitas para fachadas de edifícios já foram destruídas ou desfiguradas e que a ignorância e falta de interesse em cuidar de um património por vezes esteticamente distante do que hoje em dia se valoriza continua a ser a responsável por muitas destas situações. O caso do mural para a Moradia Ribeiro da Cunha, no Restelo, que foi destruído em 2000, parece-me o caso mais gritante, pois de todas as colaborações com a arquitectura, esta pareceu-me, de entre a produção conhecida de Pomar, aquela que com maior eficácia respondia aos critérios da integração das artes explorados na época.


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



Júlio Pomar - Prato (Peixes com retrato de Alice Jorge), Cerâmica Bombarralense Lda., 1954. © CMP



Júlio Pomar - Prato, Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP


Júlio Pomar - Bela Aurora, Manufactura Tapeçarias de Portalegre, 1983 a partir de cartão de 1949. © CMP


Júlio Pomar - Bela Aurora, Manufactura Tapeçarias de Portalegre, 1983 - 1949, detalhe. © CMP




CMP*: O que distingue ou caracteriza os trabalhos de artes decorativas de Júlio Pomar? 

CR: Há algumas características das artes decorativas de Pomar que estão também presentes na obra de outros artistas da sua geração com semelhante filiação estética, desde logo as colaborações com arquitectos, com os quais estes artistas partilhavam sentimentos e práticas mais ou menos evidentes de oposição ao regime, e também a opção, clara no caso das produções cerâmicas e vidreiras para uso doméstico, pela peça única e feita à mão, ou seja, pela realização de originais mesmo quando a técnica em si mesma continha potencial reprodutivo. Isto vai contra algumas convicções expressas pelo próprio Pomar, na altura, acerca da importância da exploração da reprodução e do múltiplo possibilitada pelas artes decorativas e na consequente maior disseminação das linguagens artísticas modernas pelo quotidiano das pessoas, mas liga-se também, muito possivelmente, aos preços mais elevados atingidos por estas peças originais por comparação com os múltiplos, numa altura em que a venda de obras de maiores dimensões e com maior valor de mercado, como a pintura, estava fortemente constrangida, quer devido ao gosto mais tradicional do coleccionador-padrão quer devido às escassas oportunidades que estes artistas tinham de expor as suas obras.
Mas há duas ou três características na produção decorativa de Pomar que merecem ser destacadas. Uma delas é a grande liberdade com que o artista experimentou diferentes materiais e técnicas, o que é sobretudo visível nas colaborações com os arquitectos e no âmbito da integração das artes. Entre as tapeçarias e os painéis de azulejos, estes últimos de desenho livre ou de estampilha, e além de pinturas a óleo e painéis amovíveis realizados sob encomenda, há uma vasto leque de outras opções abordadas pelo artista, como pintura a fresco, desenhos feitos com pequenos mosaicos de cerâmica vidrada, murais em pasta de marmorite, esgrafitos incisos em estuque e em rebocos de cimentos coloridos, vitrais, estudo de cor para fachadas e altos-relevos e esculturas em cimento patinado, cerâmica e alumínio batido. Em segundo lugar é muito significativo que as obras de Pomar dentro do campo da integração das artes tenham acontecido, quase todas, já depois de o artista ter realizado uma intensa reflexão escrita, publicada em diversa imprensa de referência da época, sobre as artes decorativas, a integração das artes e o questionamento da própria noção de “decorativo”. É também muito interessante e sobretudo enriquecedor para a abordagem ao conjunto da obra de Pomar verificar de que modo diversas soluções estilísticas e temáticas vão sendo ensaiadas em diferentes suportes e através de técnicas diversas. O famoso “Ciclo do Arroz”, por exemplo, não existe apenas na pintura, mas também num conjunto de pequenas estatuetas decorativas em barro cozido. Outro exemplo é a forma como os esgrafitados realizados sobre superfícies como cimentos ou estuques aparecem mais tarde em desenhos e serigrafias de contornos muito lineares a agudos, como se tivessem sido incisos também. Ou o modo como os animais formam uma extensa galeria temática que não se circunscreve apenas aos famosos tigres representados na pintura, mas preenche boa parte da produção cerâmica ligada a objectos de uso quotidiano como pratos e jarras.


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


Júlio Pomar & Alice Jorge - Jarras, Fábrica Irmãos Stephens, Marinha Grande, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Peças em alumínio batido, anos 1950. © CMP


Júlio Pomar - Galo, Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP



CMP*: No contexto da integração das artes, quais as principais diferenças que encontras entre as propostas preconizadas pelo SNI e as produzidas pela geração de Júlio Pomar?

CR: Não julgo que seja possível falar de “integração das artes” no caso das opções decorativas defendidas e promovidas pelo SPN/SNI, mesmo tendo em conta a enorme eficácia de todo o aparato visual, de uma unidade estilística notável e ainda hoje claramente reconhecíveis, presente na comunicação e propaganda das acções governativas, fossem elas culturais ou não. Mas no âmbito das artes decorativas em sentido mais estrito, as diferenças são muito eloquentes, e não é por acaso que artistas como Pomar se empenham, justamente, em rever o conceito de decorativo e de decoração. A distinção mais imediata a fazer é entre uma ideia concreta de portugalidade promovida pelos artefactos eleitos pelo SPN/SNI para exprimir uma cultura material nacional de contorno rurais e pitorescos, que culmina no programa ideológico contido no Museu de Arte Popular, uma das últimas criações de António Ferro, em 1948, e um certo cosmopolitismo procurado pelos artistas (e arquitectos) da geração de Pomar, ligado a movimentos interdisciplinares de entre-guerras, como a Bauhaus e o neoplasticismo, interessados na arquitectura modernista escandinava e norte-americana, leitores de Le Corbusier, defendendo a dimensão projectual do desenho, atentos à questão da forma-função e, de um modo geral, à criação de objectos procurando uma coerência plástica que resultasse, antes de mais nada, da eficácia estética e funcional com que eles se relacionavam com tudo o que estivesse à sua volta, desde a envolvente arquitectónica aos novos modos de vida que, aos poucos, o pós-guerra obrigatoriamente introduziu também num país relativamente neutro como Portugal. Esta oposição entre portugalidade e cosmopolitismo implica uma questão que é de primeira importância para se compreender muito do que estava em causa nas lutas estéticas e ideológicas dos artistas desafectos do regime e permite pensar de outro modo temas neo-realistas como a questão forma-conteúdo e o problema da ilustração: é que enquanto a arte popular promovida pelo Estado Novo pretendia, de forma inequívoca, contribuir para modelar os comportamentos individuais à imagem da ideologia política em curso, as artes decorativas tal como defendidas pela geração do pós-guerra defendiam um realismo que partia de uma dinâmica muito mais observacional e de reacção ao que se passava à sua volta.



Júlio Pomar - Prato (Gafanhoto), Cerâmica Bombarralense Lda., 1948. © CMP


Júlio Pomar - Prato (Pelicano), Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, c.1955-56. © CMP


Júlio Pomar - Prato (sobre poema de Armindo Rodrigues), Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP


Júlio Pomar - Prato (sobre poema de Armindo Rodrigues), Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP



CMP*: Como vês a questão da integração das artes no pós o 25 de Abril e na actualidade?

CR: Não posso falar com grande propriedade dessa questão, pois não sou especialista nem em artes decorativas nem na muito complexa, e estimulante, questão da integração das artes. O meu interesse por este tema não é tanto um ponto de partida que me conduza a investigar, por exemplo, diferentes períodos e manifestações desta área artística, mas o ponto de chegada de várias perguntas que a dado momento dirigi à própria história da arte e que me conduziu a uma ideia de modernismo posta em questão durante os anos 1940-50 e ao modo como os artistas e os arquitectos daquele período compreenderam que a noção de “decorativo” era um excelente pretexto para iniciar uma série de revisões à ideia e à prática da arte e da arquitectura.


Júlio Pomar - Escultura, c. 1949-51. © CMP


Júlio Pomar - Prato, Cerâmica Bombarralense Lda., 1949. © CMP


Júlio Pomar - Prato, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP



CMP*: Prevês outros projectos curatoriais relacionados com artes decorativas, indústria ou integração das artes? 

CR: Pessoalmente, não tenho para já nenhum projecto muito definido nestes âmbitos, o que não quer dizer que não gostasse de investigar e conhecer melhor as produções de outros artistas deste período. As artes decorativas são um campo fértil em Portugal, onde praticamente tudo está por fazer, e aqui incluo também o mobiliário, que já começa a ter algumas sistematizações, em grande parte e felizmente devido à quantidade de arquitectos e designers que se encontram a realizar investigações para doutoramentos, e de alguns galeristas e antiquários que estão eles próprios a fazer ou a encomendar pesquisas sobre a produção nacional do pós-guerra, também para melhor conhecerem e valorizarem os seus artigos. Para além das importantes sistematizações oriundas da história da arte que já existem há algumas décadas, enquanto não se descer ao detalhe e começar a trabalhar monograficamente as vertentes decorativas de artistas mais conhecidos por outras áreas artísticas, não se poderá avançar muito mais no conhecimento deste campo de trabalho tão estimulante para a compreensão da cultura de um dado momento.



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



Júlio Pomar - Prato, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP





Agradecimentos: Catarina Rosendo; Sara Antónia Matos; Pedro Faro; Atelier-Museu Júlio Pomar.





sábado, 23 de julho de 2016

Azulejaria moderna na exposição Fragmentos de Cor | Azulejos do Museu de Lisboa II


Continuação de: Azulejaria moderna na exposição Fragmentos de Cor | Azulejos do Museu de Lisboa I

Nota prévia: centrando-se apenas na produção do século XX, esta é a segunda de duas publicações cujo texto é integralmente reproduzido das legendas da exposição Fragmentos de Cor | Azulejos do Museu de Lisboa, que permanecerá no Pavilhão Preto do Museu de Lisboa - Palácio Pimenta até 25 de Setembro de 2016. 

Esta mostra permite a rara oportunidade de ver exemplares de azulejaria outrora integrados em edifícios da cidade de Lisboa, salvos e preservados graças à acção de cidadãos, serviços e funcionários autárquicos, contribuindo para reforçar a evidência de que a cidade seria muito mais rica e interessante caso tivesse sido possível a conservação destas obras in situ
Vale a pena continuar a tentar, começando pela visita a uma exposição motivadora.  



§ § §



Após um breve interregno que sucedeu à Exposição do Mundo Português, em 1940, o azulejo reapareceu associado às novas tendências da arquitectura moderna de expressão internacionalista, em grande parte devido à abertura a artistas jovens, da Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego, dirigida por Mestre Eduardo Leite. À obra de pendor figurativo de Jorge Barradas, desenvolvida a partir de 1945, sucedem-se criações modernas muito variadas, como as seriadas de Fred Kradolfer (ver publicação anterior) e Hansi Staël, ou a associação de sugestões figurativas e de formas geométricas livres, admiravelmente conjugadas por Maria Keil no painel da Avenida Infante Santo (fragmento exposto) ou nas decorações das estações iniciais do Metropolitano de Lisboa.



Jorge Barradas - Talhas com temas de Lisboa, Fábrica Viúva Lamego, 1947. © CMP



Par de talhas com temas de Lisboa, da autoria de Jorge Barradas (1894-1971), executado na Fábrica Viúva Lamego, em 1947.
Peças cerâmicas de cariz decorativo, com pintura de acentuada delicadeza representando figuras populares de Lisboa, designadamente as vendedoras ambulantes de flores e fruta, tendo por fundo casario típico, afins de litografias com a mesma temática e inspiradas em ilustrações do autor na primeira fase da sua carreira. As tampas são rematadas com a modelação de um dos símbolos presente nas armas da cidade: a barca.
Estes exemplares foram encomendados para a decoração de algumas salas (República e Rosa Araújo) do edifício dos Passos do Concelho, aquando das comemorações do oitavo centenário da conquista de Lisboa aos mouros. 



Jorge Barradas - Talha, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1947. © CMP



Jorge Barradas - Talhas com temas de Lisboa, Fábrica Viúva Lamego, 1947. © CMP



Jorge Barradas - Talha, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1947. © CMP



Jorge Barradas - Talha, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1947. © CMP



Jorge Barradas - Talha, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1947. © CMP



Jorge Barradas foi um dos mais destacados precursores da cerâmica moderna em Portugal, nomeadamente a partir da primeira exposição de azulejos e cerâmicas, realizada no Palácio Foz (SNI) em 1945, na qual o painel abaixo reproduzido foi apresentado. No exemplar, Barradas parece ter sido inspirado em alguma pintura italiana do Quattrocento.
Este painel representa a Virgem Maria ofertando um fruto ao Menino ao seu colo. O tema surge sobre um fundo de árvores e casas, sendo envolvido por uma cercadura estilizada com vasos, ramagens floridas e um par de pássaros, na parte superior, ao centro.



Jorge Barradas - Virgem com Menino e Fruto, Fábrica Viúva Lamego, 1945. © CMP


Jorge Barradas - Virgem com Menino e Fruto, Fábrica Viúva Lamego, 1945. © CMP



Painel mural O Mar (fragmento) da autoria de Maria Keil (1914-2012), proveniente da Avenida Infante Santo, Lisboa. Executado na Fábrica Viúva Lamego, em 1958-59.
Composição parcial de um painel de formato rectangular, de grande dimensão, que constitui um dos referentes da obra de Maria Keil e da azulejaria moderna portuguesa. Representa um pescador de pé, a exibir um barco à vela e com uma criança ao colo, tendo como fundo outras embarcações do mesmo tipo. Toda esta figuração joga de maneira conexa e notável com as formas geométricas, as quais são constituídas a partir de uma matriz de losangos e fusos que variam com excepcional elasticidade de escala e proporção ao longo do painel, criando, por sua vez, uma malha que sugere as redes da faina da pesca.
O programa decorativo, de forte pendor geométrico, conjugava-se de forma admirável com o suporte arquitectónico onde se encontrava aplicado, de tal forma que, uma extensa escada que o atravessava, diagonalmente, era assimilada pela composição decorativa do painel, não constituindo elemento estranho ou intromissor.
Na Avenida Infante Santo, no muro onde estava o painel original (de que faz parte o fragmento exposto), foi colocado nos inícios deste século, uma réplica, feita a partir dos cartões originais da artista e produzida pela mesma fábrica, a Viúva Lamego.



Maria Keil - Fragmento do painel O MarFábrica Viúva Lamego, 1958-59. © CMP



Maria Keil - Fragmento do painel O Mar, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1958-59. © CMP



Maria Keil - Fragmento do painel O Mar, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1958-59. © CMP



Vista parcial da exposição Fragmentos de Cor | Azulejos do Museu de Lisboa. © CMP



Azulejos de padrão criados por Hansi Staël (1913-1961) para o Hotel Ritz, executados na Fábrica de Sant'Anna, c. 1957-58.
Padronagem moderna inspirada nas antigas composições de azulejo ponta de diamante. A decoração a azul, a verde, a roxo, a amarelo e a negro, em contraste com o esmalte branco, é realizada através de dois azulejos iguais, que se intercalam. organizando dessa forma pirâmides com e sem truncagem no vértice. Este padrão é conhecido por Ritz, por ter sido utilizado no bar do hotel com aquele nome, em Lisboa.



Hansi Staël - Detalhe do padrão Ritz, Fábrica de Sant'Anna, c. 1957-58. © CMP


Padrão formado por quatro azulejos diferentes, em tons predominantes de verde e amarelo, dando origem a uma composição dinâmica e geométrica, característica do início do movimento moderno em Portugal, no qual a artista Hansi Staël, de origem germano-húngara, teve um papel assinalável.
Este padrão foi concebido como ensaio para a decoração do revestimento da fachada norte do Hotel Ritz, em Lisboa e rejeitado, tendo a versão definitiva o mesmo desenho, mas com a substituição da cor verde por azul.


Hansi Staël - Ensaio de padrão para o Hotel Ritz, Fábrica de Sant'Anna, c. 1957-58. © CMP



Vista parcial da exposição Fragmentos de Cor | Azulejos do Museu de Lisboa. © CMP



Painel da antiga Livraria Ática, na Rua Alexandre Herculano, em Lisboa. Da autoria de José de Almada de Negreiros (1893-1970), executado na Fábrica Viúva Lamego, em 1955.
Painel decorativo em pintura policroma, que revestia a parede defronte da entrada da antiga Livraria Ática. Apresenta diversas figuras que reflectem a excepcional expressividade dos desenhos do autor. Ao meio da composição, a cena maternal num pequeno espelho de água.


Almada Negreiros - Painel da antiga Livraria Ática, Fábrica Viúva Lamego, 1955. © CMP



Almada Negreiros - Painel da antiga Livraria Ática, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1955. © CMP


Almada Negreiros - Painel da antiga Livraria Ática, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1955. © CMP



Almada Negreiros - Painel da antiga Livraria Ática, detalhe, Fábrica Viúva Lamego, 1955. © CMP



Painel de azulejos, Alto de Santa Catarina, da autoria de Manuel Cargaleiro (n. 1927), realizado na Fábrica Viúva Lamego, em 1969.
Painel policromo constituído por azulejos decorados individualmente com signos de cariz geometrizante e abstracto. É comum na obra do artista as composições recriarem aspectos e/ou sensações derivadas da malha urbana da cidade. 



Manuel Cargaleiro - Painel Alto de Santa Catarina, Fábrica Viúva Lamego, 1969. © CMP 


Maqueta da decoração em azulejos, em arte final (1993), do projecto para a cozinha de um apartamento na Rua dos Correiros, em Lisboa, ilustrando o projecto de revestimento de azulejos, da autoria de Querubim Lapa (1925-2016), realizado em 1988.
Na decoração, as paredes transformam-se num palco do imaginário associado à comida, com integração de cenas irónicas. Sobre o lava-loiça, uma figura masculina, de pé, quase totalmente envolvida por diversos tipos de peixes, assenta num plano aquático cuja linha do horizonte é recortada por barcos. No lado contrário, uma figura feminina, encontra-se coberta por frutos da terra, numa recriação de Pomona, a deusa da abundância e dos pomares. Vitualhas diversas surgem penduradas, como peixes (um deles fumando cachimbo) e carnes, respectivamente, sobre a chaminé e sobre um armário. Os aspectos divertidos ganham particular expressão nas representações debaixo de uma janela, com uma raposa sentada, tocando flauta junto de galináceos. Na profusão decorativa da complexa e irreverente composição, que não se esgota na descrição, Querubim remete para tradições iconográficas ligadas ao azulejo e à cozinha tradicional, percebendo-se influências das figurações híbridas maneiristas conciliadas aos excessos do barroco.


Querubim Lapa - Maqueta para cozinha, 1993, projecto executado da Fábrica Viúva Lamego, 1988. © CMP


Painel Cais das Colunas, realizado por Querubim Lapa nas oficinas da Escola António Arroio, em Lisboa, 1991.
Composição de azulejos cuja decoração foi obtida pela antiga técnica de aresta moldada, revestidos de vidrado de cor verde, corado com óxido de cobre. Representa linhas ondulantes na base, alusivas ao Rio Tejo, as duas colunas do cais do Terreiro do Paço e, distribuídas aleatoriamente, esferas armilares de duas dimensões, evocando o emblema do rei D. Manuel (1469-1521) que este mandou gravar em azulejos sevilhanos, nos inícios de Quinhentos, para decorar o Paço Real de Sintra.



Querubim Lapa - Painel Cais da Colunas, oficina da Escola António Arroio, 1991. © CMP



Querubim Lapa - Painel Cais da Colunas, detalhe, oficina da Escola António Arroio, 1991. © CMP



Painel cerâmico realizado pelo mesmo autor, nas oficinas da Escola António Arroio, em 1992, revela a capacidade criativa de Querubim Lapa, autor de uma obra múltipla que se revela tanto do ponto de vista técnico como em termos imagéticos. 
A composição é em grande parte formada por dois azulejos diferentes que insinuam perfis anatómicos e se repetem, alternando em xadrez. 
Esta matriz é alvo de um jogo de nuances ao nível da textura, cor e brilho dos vidrados, de beloe feito plástico, metamorfoseando-se, na parte superior do painel, ao centro, na silhueta de uma cabeça humana representada de perfil.


Querubim Lapa - Painel relevado, oficina da Escola António Arroio, 1992. © CMP



Querubim Lapa - Painel relevado, detalhe, oficina da Escola António Arroio, 1992. © CMP