terça-feira, 23 de agosto de 2011

Desenhos para decoração de tigelas - Fábrica de Loiça de Sacavém

Os padrões abstractos e geométricos com raízes nas propostas da Bauhaus e da Art Déco, consubstanciam as tendências modernas, sobretudo a partir da década de 20.
Em Portugal, estes padrões foram produzidos em muito menor quantidade do que noutros países, como a Alemanha e os Estados Unidos da América, o conservador gosto dominante exigia ornamentos florais e elementos de inspiração Rococó ou folclórica.
A Fábrica de Loiça de Sacavém introduz os padrões geométricos em estampilha, tanto com pintura a aerógrafo como manual, no início dos Anos 20.
A decoração nº 937, para  tijelas formato Douro (conforme descrito no desenho), com pintura a aerógrafo, usada nas décadas de 30 e 40, aparece em duas variações, A – em azul e magenta e B – em verde e laranja.



Decoração nº 937 A e B, a aplicar em tigelas formato Douro. © CMP
 

Tigela formato Douro, com a decoração nº 937 B. © CMP


Marca de fábrica acompanhada da indicação 937.B. © CMP


O desenho para decoração Criss-Cross, também para o formato Douro, com pintura manual em tons de amarelo e castanho, está datado dos Anos 30 a 50.



Decoração Criss-Cross, a aplicar em tigelas formato Douro. © CMP

Desconhece-se se esta proposta decorativa chegou realmente a ser produzida, qualquer informação sobre este assunto poderá aqui ser acrescentada.
Demonstra, no entanto, claras influências dos padrões para a loiça utilitária Vernonware, desenhados por Gale Turnbull, para a firma californiana Vernon Kilns, desde o final da década de 30 até ao seu encerramento no fim dos Anos 50, em especial o padrão Organdie.


Taça Vernonware, formato Montecito, decoração Organdie, com 20 cm de diâmetro. Vernonware 


Conjunto de taças Vernonware, com decoração Organdie em formato Montecito. Vernonware

Jarro Vernonware, decoração Organdie, com 28,5 cm de altura. eBay


Manteigueira Vernonware, decoração Organdie em formato MontecitoeBay 


Prato com divisórias Vernonware, decoração Organdie em formato Montecito. eBay


Prato com pegas Vernonware, decoração Organdie em formato Montecito. eBay

Marca de fábrica Vernonware, padrão Organdie, utilizada nas décadas de 30 e 40. eBay

Estabelecida em Los Angeles, Califórnia, em 1931, a Vernon Kilns produziu loiça de uso doméstico e decorativa, com figuras de estrelas de cinema e temas retirados dos filmes da Walt Disney  em 1941 e 42.
A empresa fechou em 1958, tendo sido responsável pela criação de mais de mil peças com formatos e decorações diferentes, a maior variedade e quantidade alguma vez produzidas por uma fábrica de cerâmica californiana. 
De 1936 até ao início dos Anos 40 as peças com maior sucesso, fabricadas pela Vernon Kilns, foram os pratos decorativos desenhados por Rockwell Kent.
A partir de 1936-37, May & Vieve (Genevieve) Hamilton foram responsáveis pelo desenho de padrões para aplicação em loiça de uso doméstico, tendo atingido um enorme sucesso com os padrões Rhythmic e Rippled, ambos ao gosto Art Deco.


Prato Vernonware, formato Montecito, 30,5 cm de diâmetro, decoração Organdie na variação T-501. Vernonware 



Cafeteira Vernonware, formato Montecito, decorada com a variação do formato Organdie, T-504. Vernonware


Cafeteiras Vernonware, formato Montecito, nas variações da decoração Organdie T-602, T-604 e T-605. Vernonware



O padrão Oragandie, desenhado por Gale Turnbull, foi produzido de 1937 a 1958, no formato Montecito, e dá início a uma vasta gama de variações posteriores da mesma autora:
Bel Air, produzido em 1948 no formato San Marino; Calico, produzido entre 1949 e 1954 (e em 1955 apenas por encomenda) no formato Montecito; Gingham e Homespun, produzidos entre 1949 e 1958 no formato Montecito; Mexicana, produzido entre 1950 e 1955 em ambos os formatos; Mojave e Gayety ambos produzidos no formato San Marino; Tam O'Shanter, produzido entre 1949 e 1958 no formato Montecito Tweed, produzido entre 1950 e 1954 (e em 1955 apenas por encomenda) também no formato Montecito.
 


Bule Vernonware, formato San Marino, decoração Bel Air. eBay

Prato pequeno Vernonware, formato Montecito, decoração Calico. Vernonware

Bule Vernonware, formato Montecito, decoração Gingham. Flickr


Prato raso Vernonware, formato Montecito, decoração Homespun. iOffer


Chávena Vernonware, decoração Mexicana. eBay


Açucareiro Vernonware, formato San Marino, decoração Mojave. Vernonware

Leiteira Vernonware, formato Montecito, decoração Tam O'Shanter. eBay


Os desenhos aqui publicados fazem parte do acervo do Centro de Documentação Manuel Joaquim Afonso e estão visíveis na exposição A Geometria das Cores, patente no Museu de Cerâmica de Sacavém até 31 de Dezembro de 2011.




segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Vestíbulo de edifício na Av. EUA, Lisboa - Cecília de Sousa

Os novos bairros orientais de Lisboa desenvolveram-se ao longo dos Anos 40, segundo  planos  do arquitecto e urbanista João Guilherme Faria da Costa (1906-1971), seguindo-se-lhes o conjunto da Av. dos Estados Unidos da América, situado a noroeste dos anteriores, parte integrante de uma concepção abrangente, prevendo cerca cinco mil habitantes. 
O projecto entrava em ruptura com o princípio tradicional de rua-corredor, ainda em vigor na Av. de Roma, propondo a implantação de edifícios assentes sobre pilotis, de maior escala, perpendiculares à via de circulação.
A urbanização desta artéria é composta por várias fases de construção, sendo os conjuntos habitacionais da responsabilidade de diferentes equipas de arquitectos. 


Av. dos EUA, 1958. O referido edifício pode ver-se do lado esquerdo. AML


Nestas edificações, a colaboração de artistas plásticos e a incorporação de intervenções artísticas, sobretudo na fase inicial, até finais da década de 50, deve-se tanto a imposições legislativas, como à genuína vontade de desenvolvimento de um trabalho integrado por parte de arquitectos e artistas, na concretização dos princípios fundamentais do modernismo.
Num dos edifícios do lado Oeste, projecto de 1957 da autoria do arquitecto Licínio Cruz (1914-?),  a ceramista Cecília de Sousa (n.1937) é convidada a colaborar na concepção do vestíbulo, elaborando um conjunto azulejar composto por  vários planos, capaz de materializar a relação entre interior/exterior. 



Edifício na Av. dos EUA, arquitecto Lucínio Cruz, 1957. © CMP


Instalado numa antecâmara totalmente envidraçada, o painel, articulado em três paredes, contribui para definir um espaço de transição, funcionando em diálogo permanente com o exterior.


Vista exterior do vestíbulo. © CMP


Cecília de Sousa concluiu o Curso de Cerâmica da Escola de Artes Decorativas António Arroio em 1955, tendo sido, nesse mesmo ano, convidada a integrar a equipa da Fábrica Viúva Lamego como pintora de loiça.
O seu espírito de iniciativa e qualidades criativas garantiram-lhe o privilégio de desenvolver experiências como autora nas instalações da fábrica, acabando por contribuir para a actualização do catálogo de produtos da empresa, em especial as encomendas de gosto moderno. 
Mestre Leite da Silva, um dos proprietários da Viúva Lamego, havia iniciado a atribuição de  oficinas individuais a artistas com o convite feito a Jorge Barradas (1894-1971), cerca de 1945, sendo esta prática continuada  com ceramistas das gerações seguintes, como Manuel Cargaleiro (n.1927) ou Querubim Lapa (n.1925), promovendo a consolidação da cerâmica de autor de linguagem moderna, na segunda metade do século XX. 
Na senda dos seus predecessores, em 1957, Cecília de Sousa acede a espaço oficinal próprio, um casulo, como se chamavam estas oficinas individuais, que ficara vago com a ida do seu  mestre, Manuel Cargaleiro,  para Paris.   
Nesse mesmo ano, a ceramista expõe  individualmente pela primeira vez, na Rampa. Espaço singular, a Rampa propôs uma renovação no contexto do modernismo em Portugal,  seguindo a tradição do arts & crafts, dedicava-se a comercializar objectos utilitários de autor com qualidades e acabamentos de produção manual. 
A mítica loja, projectada em 1956 por Conceição Silva (1922-1982) com a colaboração de José Santa Rita (1929-2001), rapidamente  adquiriu o estatuto de referência no panorama das artes decorativas em Portugal.  



Inauguração da primeira exposição de Cecília de Sousa na Rampa, 1957. Imagem publicada no catálogo A minha segunda casa... Cecília de Sousa, obra cerâmica 1954-2004, edição do Museu Nacional do Azulejo, 2004.


Cecília de Sousa inicia então uma profícua colaboração com o arquitecto  Conceição Silva, no desenvolvimento de inúmeros revestimentos e guarnições cerâmicas, trabalhando ainda noutros tantos projectos com os arquitectos Lucínio Cruz, Andrade Barreto e Oskar Pinto Lobo (1913-1995) e com os designers José Espinho e Carlos Ribeiro.
Na sua primeira experiência arquitectónica, o vestíbulo na Av. EUA, a ceramista concebe um painel articulado em três secções, enquadrando a porta do ascensor.
  

Vista geral. © CMP


 © CMP

Nesta obra inicial, de maior escala, Cecília de Sousa resolve de forma eficiente os problemas de escala dos elementos pictóricos e de adequação das tonalidades cromáticas, que, a partir de uma gradação de cinzas, vão adquirindo a textura pétrea do restante revestimento, fundindo-se numa atmosfera una.


Plano lateral, pode ver-se a aproximação do painel ao restante revestimento. © CMP


Neste painel, a autora utiliza uma técnica já anteriormente ensaiada em peças de pequena escala, onde várias velaturas sobrepostas são obtidas através de sucessivas cozeduras e raspagens do vidro. 
Este é o processo tradicional para retoque de peças de faiança, em que uma fina camada de cola é aplicada para facilitar a aplicação da seguinte camada de tinta. 
A ceramista transforma assim um processo que anteriormente servia para corrigir erros técnicos, num recurso meramente plástico, aumentando a noção de profundidade das texturas e os valores tácteis da superfície pictórica.


Detalhe da superfície. © CMP


© CMP


Detalhe do plano frontal, pode ver-se a articulação entre os elementos pictóricos a o painel metálico do elevador. © CMP


Assinatura com data de 1959. © CMP


Ainda de referir, neste mesmo vestíbulo, o puxador da porta que dá para o exterior, constituído por uma placa cerâmica, com cores quentes em vidrados de altas temperaturas.




© CMP




Detalhe do puxador da porta da rua. © CMP





terça-feira, 9 de agosto de 2011

Jarra - Raul da Bernarda

Jarra produzida pela fábrica Raul da Bernarda, provavelmente durante as décadas de 50 e 60. 
Formato 600, configuração assimétrica com 30 cm de altura, 26 de largura e 8 de espessura, este modelo foi produzido com várias decorações que,  regra geral, se encontram  apenas concentradas na parte da frente da jarra.
O motivo decorativo 17, aplicado em vários tipos de peças (pratos, travessas, etc.), consiste numa cena nocturna num bairro popular lisboeta, onde, em primeiro plano, sobre um fundo de casario, figura um casal envergando trajes típicos, acompanhado de um gato.
Toda a figuração é preenchida com vidrados coloridos relevados sobre fundo preto baço, as linhas são esgrafitadas e o interior da peça é de um vidrado amarelo brilhante.


Raul da Bernarda - Jarra, modelo 600. © CMP


Raul da Bernarda - Jarra, modelo 600. © CMP

Raul da Bernarda - Jarra, modelo 600. © CMP

Raul da Bernarda - Jarra, modelo 600. © CMP


É evidente a proximidade formal e temática com a ilustração e o cartoon da época, para além das já identificadas influências italianas, aqui, mais especificamente, das peças produzidas na República de San Marino.
Muitas das peças produzidas nesta república, entre o final dos Anos 30 e o final dos Anos 60, eram para consumo turístico e apresentavam marcas carimbadas de várias regiões de Itália, embora fossem de facto fabricadas em San Marino.


República de San Marino - Placa de parede ou travessa. eBay

República de San Marino - Placa de parede ou travessa, detalhe. eBay

Exemplo de marca carimbada da cerâmica Libertas, San Marino.

As manufacturas mais relevantes em San Marino durante este período temporal foram:
Marmaca - operou de 1940 a 1964.
Titano (do Monte Titano, onde se situa a RSM) - operou de 1952 a 1981. 
Arcas - operou de 1954 a 1981/82.
SAM (Società Anonima Marina) - de 1955 a 1989.
SACAS (em 1964 passa a chamar-se ACAS, Artigianato Ceramiche Artistiche Sammarinesi) - operou de 1954 a 1990.
Libertas - de 1955 a 1987.
Masi - de 1937 a 1949.
Stella Polare - de 1962 a 1989. 
Muitas destas fábricas produziram peças com características formais semelhantes e relativamente fáceis de identificar, associando a desenvoltura pictórica italiana dos motivos figurativos, às influências alemãs, nos vidrados espessos, onde os coloridos de altas temperaturas contrastam com fundos negros.
Estas peças, tal como as alemãs do mesmo período, são muitas vezes identificadas como "Fat Lava", devido às texturas fortes e rugosas, tão em voga nos Anos 60.

Alguns exemplares da produção alemã (da antiga República Federal da Alemanha), muitas vezes apenas numerados e marcados West Germany, ou com visíveis identificações de fábrica, apresentam figurações similares às peças Raul da Bernarda.


Ruscha-Keramik (Alemanha Federal) - Placa de parede, com figuras japonesas. eBay

Ruscha-Keramik - Marca de fábrica. eBay

Raul da Bernarda - Jarra, modelo 600, detalhe. © CMP


A Ruscha-Keramik foi uma das companhias fundadoras do novo movimento de design cerâmico na Alemanha, quando em 1954 introduziu o modelo 313, um jarro de formas curvas e elegantes, desenhado por Kurt Tschörner, que recupera as ideias da Bauhaus e do primeiro modernismo.


Ruscha-Keramik - Jarro modelo 313, 1954. eBay

No pequeno prato Ruscha, modelo 712 (1960), com a decoração Paris (1956-58), apresentado abaixo, a figura do gato apresenta semelhanças óbvias com o gato presente em várias peças Raul da Bernarda do mesmo período.
 

Ruscha-Keramik - Prato modelo 712, detalhe com gato, c.1960. eBay

Ruscha-Keramik - Marca de fábrica. eBay


Gato presente em vários motivos decorativo Raul da Bernarda dos Anos 60. © CMP


As peças desenhadas em 1960, por Ursula Schonhaber, para a linha "Adolescentes"  da Ü-Keramik, a companhia alemã fundada em 1909 por Johann Uebelacker, também podem ser citadas como referência, pelas suas cores fortes sobre fundo negro, em desenhos ilustrativos esgrafitados.


Ü-keramik - Prato triangular com ilustração de Ursula Schonhaber. RetroFatLava

Ü-keramik - Marca de fábrica 568 (modelo) / 13 (tamanho). RetroFatLava


Tal como Ursula Schonhaber retrata cenas estereotipadas da vida dos adolescentes, também as peças Raul da Bernarda mostram estereótipos populares portugueses. 
Estas figuras, muito comuns nas artes decorativas da época, integram perfeitamente a imagem dos tipos regionais, fomentada pela política cultural do Estado Novo. 
Qualquer informação sobre a concepção destes motivos, quem foram os ilustradores, os pintores ou a autoria das peças, poderá aqui ser acrescentada.



Raul da Bernarda - Jarra, modelo 600, detalhe. © CMP
Raul da Bernarda - Jarra, modelo 600. © CMP
Raul da Bernarda - Jarra, marca de fábrica. © CMP

A marca de fábrica aparece pintada à mão, com a referência 600 (modelo) / 17 (decoração).